Sobre a semântica de um prato: moqueca capixaba e a construção da identidade local, ES/Brasil
Resumo
O grupo de normas e convenções sociais que regulam a produção, a troca e o ato de comer em certa sociedade contribui para determinar uma tradição alimentar específica. Esta, como qualquer outro elemento da cultura, é um processo, e está sujeita à modificação contínua, embora seja considerada como ancestral, imodificável, pura e segura. Nesse contexto, o caso da moqueca capixaba – prato típico do Estado do Espírito Santo, Sudeste brasileiro – oferece interessantes oportunidades de reflexão. Nesta conferência propomos partir de dois eixos. Por um lado, o tombamento do ofício das paneleiras de Goiabeiras (bairro localizado na periferia da capital, Vitória/ES) – cujas panelas de barro pretas são o principal elemento cultural na elaboração de pratos típicos da culinária local. Em 2002, tal ofício tornou-se a primeira Indicação Geográfica brasileira na área do artesanato, considerado bem imaterial, registrado e protegido no IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, inaugurando o Livro de Registro dos Saberes e declarado Patrimônio Cultural do Brasil. O segundo eixo relaciona-se à criação da Lei Estadual no. 7.567/2003, que instituiu a moqueca como a “comida típica do Estado do Espírito Santo”. Em nosso entendimento, os dois episódios podem ser considerados como parte de um procedimento que transforma a memória em história, um processo que tem como objetivo de criar uma memória de identidade, que carrega consigo representações e reconhecimentos de uma
história que une o preparo do prato no Espírito Santo, a identidade do território e das pessoas que ali moram. Todavia, ao propor tal reflexão, não podemos esquecer os aspectos econômicos, sociais e culturais que estão envolvidos nesse processo. É aí que a história social coloca perguntas e indaga para compreender as dinâmicas dos processos vividos. Afinal, as predileções alimentares se constroem a partir duma complexa trama entre “norma de uso” e “respeito a tradição” (CASCUDO, 1983). Porém, apesar de profundamente arraigadas (o paladar é o último a se desnacionalizar), a tradição não é imóvel. Acompanha a própria dinâmica da sociedade na qual se inserem, estabelecendo o diálogo contínuo entre o tempo, entendido aqui como processo histórico, e o espaço, a geografia propriamente. De fato, como destacaram Certeau & Giard (1996), cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de histórias. Por isso, o comportamento alimentar liga-se diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa identidade social.
Oradora
Professora Doutora Patrícia Merlo
Departamento de História, Artes e Humanidades